Madrastas no divã

Era uma vez...
Assim começam muitas das histórias e dos contos de fadas que povoam o imaginário infantil. Mas como diz o escritor Ulisses Belleigoli em seu livro O canto da Princesa Rubra, “o hoje é sempre diferente do ontem. Este lugar onde estamos já foi outro lugar, com outras paisagens, outras pessoas, outras histórias... outras cores. É por isso que as histórias começam sempre com ‘era uma vez’, porque, se voltássemos ao lugar onde aquela história aconteceu, tudo já estaria diferente. Então teríamos de dizer: ‘eram duas vezes’ ou ‘eram outras vezes’...”
Entre o “era uma vez...” e o “foram felizes para sempre...” muitas histórias podem ser contadas. Inclusive, há também histórias que se seguem depois do fim. É ali, nas reticências, nos desafios da vida real, que outras inúmeras histórias podem ser escritas. Os contos de fadas são clássicos atemporais, carregados de simbolismos e é inegável que a literatura é instrumento de simbolização, que auxilia, não só à criança, mas também ao adulto, na construção de sua subjetividade. Embora os contos de fadas façam parte do estofo das fantasias que constituem nosso imaginário, o lugar que estamos hoje, o nosso tempo histórico, assim como as personagens e os atores desse nosso tempo, são outros, bem diferentes daqueles modelos cristalizados em papéis pré-estabelecidos. E podemos hoje ler, ouvir, revisitar e recontar as histórias clássicas com os elementos e os avanços da vida contemporânea. Precisamos estar atentos às subjetividades e às construções históricas de nossa época.
A maternidade, a paternidade, a infância, a adolescência, a diversidade das famílias contemporâneas estão nos divãs, trazendo interrogações e desafios. Vivemos tempos de quebras de paradigmas e preconceitos, de avanços e questionamentos sobre o lugar da mulher, da mãe, da feminilidade, do machismo estrutural e dessa família heteronormativa centrada na estrutura de poder cisgênera e patriarcal. As famílias mudaram, se diversificaram. Suas estruturas hierárquica, numérica e consanguínea foram sacudidas.E com elas mudaram também as formas de construir e contar os romances familiares contemporâneos, mesmo que guardem resquícios de lugares, elementos e personagens clássicos.
Hoje trazemos para o nosso divãuma personagem cada vez mais comum nas constituições familiares pós-modernas, mas que continua carregada de estereótipos e envolta em muitos estigmas: as madrastas. Quando abrimos o dicionário ou digitamos no google a palavra madrasta encontramos ainda, além da significação da “mulher em relação aos filhos anteriores da pessoa com quem passa a constituir sociedade conjugal”, os adjetivos de má e ingrata. Restos dessa estrutura familiar conversadora e patriarcal que enreda os modelos da Disney. A madrasta vil entra em cena para ocupar o lugar da mãe boa e disputar o amor e atenção do pai. Mas madrasta não tem como etiologia a maldade e sim a maternidade. Madrasta vem de madre, mater e assim como a mãe, ocupa um lugar no espectro da maternagem.
Não se planeja ser madrasta, uma vez que ninguém conta com isso de início. Deseja-se ser mãe, tia, bailarina, executiva, viajar pelo mundo. Deseja-se também não ter filhos. Mas ser madrasta é algo que não está a priori nos planos. Torna-se madrasta por um acontecimento do amor. Assim como a maternidade, que em nossos tempos deixou de ser um fato imposto e determinado pela condição de ser mulher e passou a ser uma escolha, tornar-se madrasta é também da ordem de uma decisão. Embora mãe e madrasta estejam enlaçadas no ato de maternar, ocupam lugares com prerrogativas bem diferentes. A mãe conta com a prerrogativa da incondicionalidade do amor. A madrasta, ao contrário, precisa ser incluída e tecer o laço nessa rede de afetos.
A psicanálise nos ensina que mãe e pai são funções simbólicas, lugares que são ocupados em ato. Dessa forma não há UMA maternidade única ou A maternidade ideal. Há uma pluralidade nas maternidades. São várias e diversas as formas de viver essas experiências que afetam cada sujeito na sua singularidade. A maternidade não é uma determinação biológica e maternar não é uma exclusividade da mãe. A maternagem está marcada pelo ato de educar e cuidar, assim como pela ambivalência de afetos.
Há mães que se tornam também madrastas. Há madrastas que se tornam mães. Há outras que, por escolha, maternam somente os enteados, os “filhos” já meio ou muito crescidinhos que nasceram para ela junto de um novo relacionamento. Madrasta não tem gestação, madrasta não tem puerpério. Madrasta entra numa história, num romance familiar que a precede. É também depositário dos amores, humores e ciúmes. Existia uma vida antes dela, com arranjos e configurações com as quais ela precisa lidar, mas não gerenciar. E segue existindo uma vida com ela. Onde novos arranjos, laços e manejos são necessários, que contam também com sua decisão e presença.
Madrasta educa. Madrasta cuida. Madrasta é rede de apoio. Madrasta dá colo, dá bronca, dá banho, dá carona. Ocupar esse posto é um desafio. É como andar na corda bamba. É caminhar numa linha tênue para encontrar a brecha do seu lugar, onde possa pertencer sem ficar à margem nem ocupar o espaço alheio.Esse maternar também é sem preparo, sem garantias e sem ideais. Não há receita, manual ou treino.Mas há construção de afetos.
Família é algo que se expande, que se amplia. Criar e construir laços é tão importante quanto ter vínculos de sangue.Se a maternidade é sempre adotiva, ser madrasta é também adotar e ser adotada nesse enredo, não sem a ambivalência e os desafios que ocupar esse posto envolve. Diz um provérbio africano que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. E nessa aldeia, nessa família estendida, nesse afeto que se expande, está também essa mulher, que não tem nada de má e tem muito de mãe.
Gláucia Pinheiro
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