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Sem cultura, a violência vira espetáculo

qui, 20/01/2022 - 15:10 -- Divercidades
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Arte

Certa vez li numa pichação em um muro, com letras garrafais, “EM UM LUGAR ONDE NÃO HÁ ATIVIDADES CULTURAIS A VIOLÊNCIA VIRA ESPETÁCULO”. No mínimo é uma frase intrigante, que nos coloca a refletir sobre o horror e a violência que marcam nossa história social e política. Na construção de nossa identidade enquanto povo e sociedade escrevemos uma história onde a violência sempre ganhou destaque promovendo inclusive a tentativa de um apagamento da cultura. Na narrativa história colocamos a violência para debaixo do tapete. A escondemos, silenciamos. Ela é pouco mencionada nas aulas e nos livros didáticos de história. A ignoramos, esquecemos ou recalcamos. Essa violência histórica, silenciada na nossa constituição enquanto sociedade, retorna, é repetida, com força, como sintoma social. Num paralelo com o que se passa na constituição subjetiva, éassim que se dá, o que recalcamos no nosso processo psíquico constitucional, retorna como sintoma.O sintoma é o retorno do que foi recalcado. No sujeito, o desejo resiste, na luta contra o sintoma. Na sociedade, contra a violência, a cultura resiste. Sempre! Como desejo!

Na direção de cura de um trabalho de análise o primeiro imperativo a convocar o sujeito é: fale sobre isso. É endereçando ao analista suas questões mais íntimas e traumáticas, falando, tornando-as públicas para si e para esse outro desconhecido no setting analítico, que o sujeito pode sair do silêncio do esquecimento, recordar, repetir (na transferência) e elaborar seus sintomas e traumas. É assim que ele pode sair das teias traumáticas, da sua violência particular, para se apropriar e tomar as rédeas do seu desejo. É o desejo que resiste, promovendo e sustentando o trabalho de análise. Este é um caminho árduo, que exige esforço, investimento, coragem para encarar sua própria história e abrir mão dos sintomas que lhes são tão caros.

Nesse paralelo entre o sujeito e a sociedade este também é o imperativo: colocar os sintomas sociais no divã, falar sobre eles. Enquanto sociedade estamos doentes. Muito doentes. Está a mostra toda nossa fragilidade sintomática. A espetacularização da violência em todas as suas facetas. Vemos o futuro repetir o passado. E mais uma vez somos silenciados e vemos o sintoma ganhar força. Diante de um pacto civilizatório esgarçado e ignorado, a morte é banalizada, o direito das crianças, dos idosos, das mulheres é usurpado, a pele preta é alvo, a sexualidade é castigo e, cada vez mais, a violência é institucionalizada, autorizada.

A civilização se funda no pacto estabelecido no laço social. É a lei simbólica que institui esse pacto. Ela vale para todos e para cada um. Nessa regra não há exceções. Para que haja civilização é preciso uma renúncia pulsional. Renuncia que também é de todos e de cada um. Para que os homens possam viver em sociedade é preciso renunciar à barbárie. Freud nos ensina que a pulsão sempre tende a atingir sua meta, sua satisfação. Quando não é possível ela se desvia. Precisa encontrar outro destino. Um desses caminhos, para dar vazão a isso que insiste e que o pacto civilizatório nos barra, é a sublimação. Sublimamos, produzimos, trabalhamos, criamos. Amamos! Buscamos a arte, a cultura. A gente não quer só comida, é preciso também diversão e arte. Não basta somente comer, é preciso também prazer pra aliviar a dor. Estamos marcados para além do campo da necessidade. É o desejo que nos move.

A cultura, a arte, é o remédio, o tratamento para essa sociedade doente. Há aqueles, que diante das suas angústias e sofrimentos, fazem da sua dor, do seu sintoma, arte. Escrevem, compõem, fotografam, pintam e bordam. Talvez esse seja um bom sintoma. Há outros que encontram a arte como refúgio, fazem dela remédio para aliviar a dor. Com olhar sensível e ouvidos atentos, contemplam e são afetados pela arte. E contra fel, moléstia, crime, usam Dorival Caymmi, bebem Chico Buarque, comem Guimarães Rosa. Para aqueles que se deixam afetar, a poesia salva, a literatura acende clarões no cérebro, a música transcende. A fotografia, a dança, o cinema, o teatro, a pintura nos permitem encontrar neles pedacinhos de nós. A arte transforma.

O caminho do trabalho analítico é possibilitar que o sujeito possa produzir a partir do seu sintoma. Fazer do sintoma, trabalho. Essa é a sua arte. O sintoma está ali, é estrutural, não será eliminado por completo. Porém, pode ser lido de outra forma, pode ser elaborado, redesenhado. Não é diferente com o sintoma social. É preciso trazer a cultura para a cena diária. Ela é resistência. É ela que nos permite elaborar, lembrar para não esquecer e repetir até se tornar diferente e não permitir mais a violência como espetáculo. Precisamos, de fato, de mais livros que armas!

Gláucia Pinheiro

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