Não é apenas na infância que o brincar se faz presente. Os adultos também brincam.
Podem e devem brincar.
Brincar é coisa séria
Fim das férias escolares. Volta às aulas, compromissos, horários, provas, deveres de casa, atividades extracurriculares… Uma rotina intensa que preenche não apenas a agenda das crianças e dos adolescentes, mas invade também o cotidiano dos adultos. E traz para a ordem do dia uma questão antiga e sempre atual, que atravessa a educação e a infância:a importância do ato de brincar.
Qual foi a última vez que você se perdeu nas horas brincando?
Pergunto não a uma criança, mas a nós, adultos.
Quando foi a última vez que você brincou? Quando foi a última vez que você brincoulivremente, divertidamente, sem conduzir a brincadeira de uma criança, sem que fosse uma tarefa dirigida, mas apenas brincando por brincar?
Sempre pensamos no brincar como algo associado à infância. O ato de brincar marca o tempo da infância. Não é de hoje que discussões e teorizações acerca do brincar circulam no campo da educação infantil. Já faz tempo que a palavra “lúdico” ganhou uma roupagem educacional, adjetivando o ensino e aprendizagem dos pequenos nos espaços de educação formal. Passou a ser também justificativa para as inúmeras atividades extracurriculares que ocupam as agendas dos pequenos e de seus pais. Um brincar dirigido. Um brincar demandado. Um brincar que ocupa o tempo do ócio, do tédio. Brincar se tornou um compromisso.
Não estamos equivocados ao associar o brincar à infância. Brincar é a língua oficial da criança. Ela brinca, antes mesmo de se apropriar da linguagem. O bebezinho, bem pequeno, sem ainda o recurso das palavras, em meio aos seus balbucios, brinca. Brincar é o primeiro ato simbólico que inaugura para esse serzinho sua relação com o outro, com o mundo. Grande parte das nossas memórias e lembranças do tempo da infância, talvez as mais intensas, estão ligadas à liberdade do brincar. O ato de brincar carrega a marca do tempo, traz em si uma ancestralidade. É condição do humano. E não só. Os mamíferos brincam e aprendem brincando.
Freud, em um de seus textos mais icônicos, assemelha a criança, no seu ato de brincar, com o poeta, o escritor criativo, aquele que brinca com as palavras e cria um mundo particular. Na brincadeira, a criança, inventa seu mundo, reconstrói histórias, transforma o dia a dia, fantasia. Para Freud, o oposto da brincadeira não é a seriedade. O oposto da brincadeira é a realidade. Brincar é coisa série. A criança que brinca, tal qual o poeta, constrói um mundo próprio, leva a sério sua brincadeira e, a partir dela, elabora e simboliza sua realidade cotidiana. Brincar é uma forma de elaboração.
O poeta Manoel de Barros, escrevendo sobre suas infâncias, nos ensina, quase que parafraseando Freud, que todo menino é poeta. Já o escritor angolano, brincante das palavras, José Eduardo Agualusa, completa, dizendo que crescer é perder poesia. Na medida que crescemos, nos afastando da infância,nos afastamos também da poesia e do brincar. Na vida adulta o brincar vai sendo usurpado pela avalanche de compromissos, urgências e obrigações. Rechaçamos o brincar por não mais tratá-lo como coisa séria. Carregamos sem trégua o peso da realidade.Como o brincar deixa de ser coisa séria, precisamos fincar o pé na realidade, deixar de brincadeira, não brincar em serviço. Mas será somente na vida adulta? Temos visto em nossos tempos, hipermodernos, também uma infância privada do brincar.
Há algumas décadas vimos entrar em cena um novo personagem que capturou o desejo de consumo, a atenção e o tempo dos adultos. E não só. Invadiu também o universo de crianças e adolescentes. Os celulares (smartphones) com seus recursos cada vez mais sofisticados, suas fascinantes telas de cristal líquido, colocaram o mundo na palma da mão. O mundo em rede, encurtou distâncias, agilizou informações, digitalizou afetose nos aprisionou, nos mantendo hiperconectados. Na era digital, transitamos entre o fascínio e o horror. A rede superficial nos oferta o que queremos, cria desejos, e rouba o que precisamos, o tempo. Ela nos afasta do laço social, das redes de afeto e nos aprisiona nas relações virtuais. Nos vemos capturados nos grupos e comunidades numa distorcida ideia de pertencimento. Sujeitos intoxicados por seus eletrônicos, dependentes digitais, adoecidos, medicalizados.
Jonathan Haidt, em seu best-seller ‘A geração ansiosa’, aponta e mapeia o crescimento alarmante de transtornos mentais ligados ao uso excessivo da tecnologia.Filmes como ‘DivertidaMente 2’ dão rosto à ansiedade, que atravessa crianças, adolescentes e adultos, permitindo que se reconheçam em algum ponto dessa trama.
Esses dois exemplos são efeitos de algo que há muito já vem sendo discutido no campo da psicologia e da educação. Que há muito já se apresenta nas escolas e se estende aos nossos consultórios.
Recentemente uma intervenção concreta e importante saiu do papel, buscando responder a esse fenômeno. A proibição do uso de celulares nas escolas. O limite do uso das telas, um questionamento com orientações até então simples, precisou de regulamentação legal. Uma aposta na saúde mental.
E é aqui que o brincar retorna com força. Brincar é remédio, antigo e urgente. A aposta é que não só as crianças e adolescentes desligam seus celulares e ocupem corredores, pátios, quadras da escola. Que ocupem praças, praias e quintais. Essa aposta é também um chamado para nós, adultos. Porque brincar é transformador – transforma-dor. Porque brincar é, sempre, um ato revolucionário.
GLAÚCIA PINHEIRO
Psicanalista e Doutorada em Psicologia.
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