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Depois do fim

qui, 17/11/2022 - 09:36 -- Divercidades
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“Vamos começar colocando um ponto final”. Assim se inicia a canção tema do documentário “Fênix: o voo de Davi”. Na noite do domingo 2 de setembro, em 2018, parte da nossa história ardeu nas chamas que consumiram o Museu Nacional. Um clarão se fez no coração do Rio de Janeiro incendiando nosso passado. Vimos queimar nossa memória e choramos, na ilusão de que nossas lágrimas pudessem apagar o fogo que desde tanto tempo faz virar cinzas as marcas que nos constituem como um povo. Ao sabor das versões vai sendo apagada a história que a história não conta, produzindo uma memória do esquecimento. 80% do acervo do Museu Nacional foi destruído pelo descaso, pela falta de investimento, pela miséria política que percorre nossa história. Restou de pé somente sua estrutura. Perda irreparável. Ponto final. “Um sinal de que tudo na vida tem fim”.
Mas é aí, depois do fim, que uma nova história começa. É da perda que se ergue o trabalho de luto. As chamas criminosas não mataram o desejo. Nem o sonho.Davi, bombeiro por profissão e luthier por artesania, estava lá naquela noite, ajudando a conter as chamas também com lágrimas. Um dia ele foi um menino, que ao subir as escadarias daquela casa grande que outrora serviu à família real portuguesa, viu sua história pessoal se misturar à história desse país. Somos constituídos das histórias que vivemos, que contamos e que nos contam. Construímos a nossa história pessoal mergulhados na herança daqueles que vieram antes de nós. E ao acordar, depois do fim, esse que um dia foi um menino que sonhou ser historiador (historia-dor), viu “um sol diferente no céu gritando que nada é tão triste assim”.
A partir das madeiras que restam como rescaldo dos incêndios que atravessam o seu ofício Davi constrói sua arte. A artesania do luthier é transformar madeiras em instrumentos musicais. Foi das madeiras centenárias que um dia foram árvores frondosas e se tornaram vigas sólidas na estrutura histórica de um patrimônio nacional, depois de arderem e queimarem, que Davi fez renascer a vida em forma de música. Como no mito da Fênix, ave de canto doce, essa metáfora que é o Davi, faz renascer das cinzas a vida que pulsa depois do fim. Reconstrói, a partir dos restos, um novo capítulo do enredo de nossa história. A madeira, como a Fênix, quando morre, canta. E quando renasce também, trazendo depois da dor, o esplendor do som do tempo.
O trabalho de análise é um trabalho de construção, ou de reconstrução, que se assemelha ao do arqueólogo, como nos ensina Freud. Reconstruímos, no divã, o que foi esquecido, a partir dos restos, dos vestígios deixados à luz. Preenchemos as lacunas da memória, num trabalho de lembrar para não mais esquecer. É nesse reconstruir que cada sujeito pode reinventar uma nova maneira de ser. No campo das artes, Freud compara o trabalho de análise à escultura. Nesse trabalho, analista e paciente, tal qual o escultor, per via dilevare, retiram da pedra bruta “tudo que cobre a superfície da estátua nela contida”. Assim como o trabalho de análise, do arqueólogo, do escultor, essa é a metáfora que o voo de Davi nos traz. É dos destroços que emergem os fragmentos para a reconstrução. Davi faz brotar dos restos incinerados da nossa história, instrumentos que nos permitem inventar uma nova canção, construindo, reconstruindo uma nova versão.
Estamos a pouco mais de 40 dias de colocar um ponto final no ano de 2022. Esse ano encerra um ciclo que se abriu lá em 2018 (ou um tantinho antes) e que teve como marco metafórico a dor da perda e da desesperança desse incêndio devastador. Nesse período de retrocessos e destruição ainda atravessamos um deserto pandêmico que deixou mais de 600 mil mortos. Mas não é sem razão que Caetano canta que o tempo, esse compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, é um dos deuses mais lindos. O tempo, não sem trabalho, nos permite atravessar o luto e, depois da dor, encontrar o esplendor da coragem. Podemos transformar o trágico em poesia e depois do ressentimento fazer brotar o amor. A vida se reconstrói o tempo todo. No divã relemos e reescrevemos nossa história ressignificando nossos traumas e sintomas. No coletivo estamos tendo a chance de colocar um ponto final em 2022 e reconstruir o passado a partir dos escombros deixados, fazendo uma reparação histórica, apostando em tudo novo de novo. O amor, a arte e a poesia de mãos dadas para fazer a revolução. Pois, é somente depois do fim que escrevivemos novos começos.

Gláucia Pinheiro

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