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Quem é o impostor?

qui, 30/09/2021 - 11:21 -- Gláucia Pinheiro
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O que está em questão é o sujeito frente ao seu desejo, diante desse ponto opaco, desse buraco que precisa ser costurado e não simplesmente tamponado.

Todos os dias acordamos e, quase que no mesmo instante em que abrimos os olhos também acendemos a luminosa tela do nosso smartphone. A sensação de que tudo está ali, brilhando, diante dos nossos fascinados e ainda embaçados olhos. Todo tipo de informação e desinformação, de verdades e mentiras, de relevâncias e irrelevâncias. A última descoberta da ciência contrastando com a última vergonha nacional. Do café da manhã do vizinho ao bebê que fala palavras difíceis, do casal apaixonado desbravando Noronha aos inúmeros vídeos profissionais, se descortina rápida e urgentemente a vida que cada um quer mostrar. Depois do desfile que rola em nossa timelineseguimos para nossos cotidianos afazeres da vida real, inebriados pelas imagens narcísicas e capturados pelas as dancinhas no reelsque parecem ter substituído o velho diploma na parede.

Em tempos de captura imaginária, de narcisismos à flor da pele, de exigências de sucesso absoluto no amor e no trabalho e principalmente com a popularidade e a competência sendo medidas pelas curtidas nas redes sociais, escutamos em nossos divãs – e não só – as ressonâncias desse contexto atravessado por ideais. Diante dessas circunstâncias da vida contemporânea, um termo já cringe ganhou notoriedade em livros, podcasts, nosfeeds dos melhores profissionais do ramo e principalmente na fala angustiada daqueles que deitam-se no divã. A Síndrome do Impostor.

Impostor, no dicionário da língua portuguesa, é aquele que pratica impostura, que lança mão de artifícios, tais como identidade, títulos, personalidade, que não são próprios, com o intuito de enganar. E Síndrome é um termo bastante utilizado no campo médico para determinar o conjunto de sinais ou sintomas que definem um processo patológico. De imediato, ao depararmos com esses dois vocábulos juntos, inferimos estarmos diante de uma nova enfermidade.  Esse termo, já quarentão, foi forjado em 1978 pelas psicólogas norte-americanas Pauline Clance e Suzanne Innes, e não consta como uma nova síndrome no também novo ManualDiagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5/2014). Mas ganhou estatuto popular de doença e vem sendo largamente estudado. O nome síndrome, neste caso, não caracteriza oficialmente e não enquadra esse conjunto de comportamentos e afetos na classe de uma doença ou uma afecção psíquica propriamente dita. Muito do que encontramos de literatura e bibliografia sobre o tema limita-se ao campo da auto-ajuda, com dicas de como superar tais comportamentos indesejados. Porém, para além de dar um nome de transtorno a um grupo de características que trazem angústia ao sujeito, precisamos escutar o que transtorna.

Para a psicanálise o diagnóstico tem um lugar fundamental na direção da análise, mas ele não é meramente um nome ou um título. Ele está pautado da história e nas experiências de cada sujeito. Os sintomas contam a história, cifrada e enigmática, de cada sujeito, a partir de sua singularidade. Assim, aquele que se sente uma fraude diante de suas conquistas, que não consegue enxergar seus acertos, se autossabota ou se cobra demais, que está preso no crivo do outro ou que duvida da sua capacidade, que se culpa ou se esquiva e que pergunta, angustiado, em busca de uma resposta, se ele “tem” a síndrome do impostor, precisa ser convidado a falar mais sobre isso. Este sujeito está diante das inibições, dos sintomas e das angústias de suas escolhas e de seu desejo.

Muitos dizem que Freud explica. Ele, na verdade, implica. A psicanálise propõe que o sujeito se implique diante da sua história, dos seus sintomas, das suas escolhas e do seu desejo. Lacan, ao trabalhar sobre a ética da psicanálise, pontua sobre a culpa e nos deixa o aviso de que só podemos nos sentir culpados, pelo menos na perspectiva analítica, por trairmos nosso próprio desejo. Somente nesta perspectiva, ao enganarmos nosso desejo, somos impostores. Para a psicanálise, em linhas gerais, o adoecimento neurótico surge da frustração, da exigência de uma renúncia a um prazer, uma satisfação. Exigimos sempre reparação pelos danos causados ao nosso narcisismo e nosso amor-próprio. Mas, surpreendentemente, o contrário também acontece. Há aqueles sujeitos que adoecem e fracassam no triunfo. Que caem enfermos quando veem se aproximar suas conquistas. Os arruinados pelo êxito são aqueles que conquistaram seus objetivos, sustentaram seu desejo, têm seus sonhos e anseios satisfeitos, mas ao se depararem com o suas realizações não se veem merecedores dela, se veem como impostores. Um paradoxo que nos assombra mais comumente do que imaginamos e que exige bem mais do que meia dúzia de orientações de como driblar tais “comportamentos”. O que está em questão é o sujeito frente ao seu desejo, diante desse ponto opaco, desse buraco que precisa ser costurado e não simplesmente tamponado.

Assim, mergulhados nesse mundo de fraude e fake, do imaginário narcísico, da ilusória popularidade dos likes no reels, da produção – ou não – de conteúdos, onde cada um gerencia como quer as informações postadas, nesses tempos de marketing pessoal em busca do sucesso do último segundo, deixamos a pergunta: quem é o impostor?

Gláucia Pinheiro 

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IG: glauciappsicanalise

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E-mail: galpinheiros03@gmail.com

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